| MANIFESTO PARA NÃO SER  LIDO [ 1946 ]   por ERASMO PILOTTO     Manifesto  (colagem de textos teóricos) da revista Joaquim, de abril de  1946. Segundo Cassiana L. de Lacerda Carollo, é de “autoria” de Erasmo Piloto,  um dos diretores das revista fundada por Dalton Trevisan.   TELES, Gilberto  Mendonça.  Vanguarda europeia &  Modernismo brasileiro.  Apresentação e  crítica dos principais manifestos vanguardistas.  21ª. edição.   Rio de Janeiro: José Olimpio , 2022.    658 p.    ISBN  978-85-5547-069-4              Ex. bibl. Antonio Miranda   ***          Os  versos são experiências e é preciso ter vivido muito para escrever um só  verso.                                RAINER MARIA RILKE
 Deveria  existir maior variedade de empreendimentos e experiências de que todos  participassem. Não sendo assim, as influências que a alguns educam para  senhores, educariam a outros para escravos.   A experiência de cada uma das partes perde em significação quando não  existe o livre entrelaçamento das várias atividades da vida.  Uma separação entre a classe privilegiada e a  classe submetida impede a endosmose da experiência.  Os males que por essa causa afetam a classe  superior são menos materiais e menos perceptíveis, mas igualmente reais. Sua  cultura tende a tornar-se estéril, a voltar-se para a se alimentar de si mesma;  sua arte torna-se uma ostentação espetaculosa e artificial; sua riqueza se  transmuda em lux; seus conhecimentos superespecializam-se; e seus modos e  hábitos se tornam mais artificiais do que humanos.
 JOHN DEWEY
 
 O  vivo interesse que em mim despertam os acontecimentos que se preparam e  particularmente a situação da Rússia, me afasta das
 preocupações literárias. Certamente, acabo de reler ANDRÔMACA de Racine com  indivísivel encanto, porém, no novo estado em que habiraa o meu pensamento,  esses esquisitos jogos não terão mais razão para existir.  Eu me repito a mim mesmo sem cessar que a  época em que poderiam florescer a literatura e as artes já passou.
 ANDRÉ  GIDE
 
 
 ...eu me domo, o pé  sobre a garganta de minha própria canção.MAIAKOVSKI
 ...toda a época moderna, desde o Renascimento,  revela-se um período de decadência da cultura cristã e da transição para uma  nova cultura, mal perceptível ainda em suas linhas gerais, e que poderíamos,  qualquer que venha a ser a sua forma definitiva (democracia social,  nacional-socialismo, comunismo, Encíclica Rerum Noravarum etc),  denominar cultura socialista.
         ...Estamos  em cheio no período de aculturação, de desintegração cultural. Que se perdeu  nesse contato entre civilização cristã moribunda e a cultura em gestação que  não sabemos ainda exatamente como será?   Perdemos as regras da vida, a moral, a confiança em nós, a certeza da  eficiência de nossas soluções.  Que veio  substituir isso tudo?  A consciência da  contradição entre a nossa moral e a realidade do mundo, a evidência da hipocrisia  da regra do jogo, o ceticismo e o cinismo. À margem das duas culturas,  observando o panorama da confusão, percebendo-o, mas ao mesmo tempo incapazes  de alterar a marcha do terrível processo desintegrador e integrador, os homens  marginais se desligam dia a dia de sua sociedade.
 Observei  a que ponto, ao atingir-se o período impressionais, a arte perdeu por completo,  na forma e no espírito, a sua função comunicativa, a sua função de linguagem  dentro do grupo.  Mostrei que de meio  utilitário de comunicação passou a exprimir apenas os sentimentos de subgrupos,  a posição marginal destes na sociedade.   Essa função restrita, dia a dia menos universal, vai afastar ainda mais  a arte de seu objetivo primeiro.  Mesmo  nos subgrupos ela deixará de ser entendida por todos, ela passará pouco a pouco  a instrumento de expressão individual, de nenhuma utilidade para os demais  membros do todo social. Observei também que na medida em que essa perda de  representatividade se verifica, as preocupações aumentam, o desprezo pelo  assunto se manifesta, e o pintor se isola dentro de limites impossíveis de se  transpor pelos não iniciados.
         Talvez  já nos encontremos em plena subida para o novo clima social... Tudo leva a crer  que assim seja.  O artista sensível, antes  marginal, assume agora a liderança e fala numa nova linguagem que ainda não  conhece gramáticas.  Do México e dos  Estados Unidos, da Espanha e da Rússia vêm-nos exemplos de um muralismo  triunfante, perfeitamente funcional através do qual se dizem ao povo coisas  importantes e de um modo acessível a qualquer sensibilidade e a qualquer  educação. Coisas sobretudo que representam um sentir igual, uma ambição comum,  preocupações e angústias coletivas.  A  pintura deixa de ser CHOCHET grã-fino dos salões mundanos e se transforma na  rude afirmação de força construtiva, de fé numa moral e numa nova ciência.  Enquanto os velhos estetas se desprendem da  vida, os novos pintores recolocam a vida em sua arte. Já não se vislumbram  entre os NOVOS aquele desdém SUPERIOR ao assunto, aquele desprezo infantil ao  inteligível, aquela propensão para um esoterismo barato de folhinha  astológica...  Isso significa apenas  volta ao princípio essencial da arte, à expressão.                                                            SÉRGIO MILLIET
 
 Os  futuros historiadores chamarão, talvez, à nossa época, o SÉCULO DO  SUBCONSCIENTE.
         Reconhecemos  no movimento histórico uma revolução perpétua, vagarosa, sem barulho  revolucionário, mas inelutável; reconhecemos que a dialética, instrumento de  compreensão, é, ao mesmo tempo, instrumento de ação; e chegamos à conclusão de  Ernst Cysarz: HISTÓRIA É UM ATO PRÁTICO.   Isto é o fio condutor para a compreensão da história contemporânea.  O novo continente do subconsciente, apesar da  sua descoberta (ou redescoberta) recente, não pertence ao mundo de amanhã, mas  ao mundo de ontem.  Estou convencido  de  que a crítica literária reconhecerá  no mundo literário de Joyce e Wolf não aurora de uma nova literatura, mas o  último produto, requintado e malogrado, de uma literatura muito velha.  E esse reconhecimento literário produz  conclusões transcendentes.  A HISTÓRIA É  UM ATO PRÁTICO. Acabamos de DESCOBRIR UM NOVO UNIVERSO; agora trata-se de  dominá-lo.  Quanto à literatura, novas  transformações estilísticas estão a postos.   E as transformações integrais do estilo literário têm sempre um sentido  profundo.OTTO MARIA CARPEAUX
 
 Em  verdade, eu tenho demoradamente refletido sobre o pedido de Griffin a respeito  de uma EXPOSIÇÃO DE PRINCÍPIOS  relativos  à arte dos versos etc.  E pude tirar de  minha consciência somente esta conclusão: Tudo é belo e bom, venha de onde vier  e tenha sido obtido pele processo que for. Clássicos, românticos, decadentes,  símbolos, assonantes ou como direi?  incompreensíveis,   desde que eles se comovam ou simplesmente se  encantem, mesmo e talvez sobretudo sem que, como o Dindon de Florian, eu não  saiba bem por que, todos eles me são caros.   Vamos, poetas que somos, amemo-nos uns aos outros, esta máxima é tão  bela em arte como na moral, e eu creio que a ela nos devemos ater.  Tal é a minha teoria, maduramente assente.
 PAUL VERLAINE
 
                                      (Joaquim,  n. 1, abril de 1946.  Curitiba.) 
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